Jean Lucca de Oliveira Becker
19 Maio 2021
“O que é isto?”, perguntou Mildred ao exibir o livro escondido, dentro de um travesseiro, pelo seu esposo, Guy Montag, bombeiro que atravessa séria crise ideológica no clássico da distopia mundial, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury[1]. Se for verdade que a literatura tem o poder de melhor mostrar as coisas do que a ciência, a pergunta da personagem Mildred – “o que é isto?” – aparece de forma extraordinária para desnudar o Direito. Afinal, o que é isto – o Direito? E o que nós, comunidade jurídica (aluno do primeiro semestre ao jurista de maior notório saber), queremos que ele seja?
Herbert Lionel Adolphus Hart (1907-1992), referido como H. L. A. Hart, influente filósofo do Direito e professor de Teoria do Direito (Jurisprudence) da Universidade de Oxford no período compreendido entre os anos de 1952 a 1968, publicou, em 1961, a primeira edição de sua obra seminal, intitulada The Concept of Law (“O Conceito de Direito”[2]), considerada, ainda por seus críticos, a mais importante de filosofia jurídica produzida no século XX. Há, naturalmente, um caminho a ser percorrido para a modesta tentativa de lançar luz sobre o debate acerca da obra em análise, mas que, neste curto espaço textual, não haveria fôlego para tanto, de modo que: o que se deve ter em mente é o fato de o autor, H. L. A. Hart, ter transformado o estudo do Direito, da teoria à prática, a partir de suas teses, expostas e defendidas com a elegância própria de um grande pensador, suscitando, desta forma, calorosos debates e comentários no âmbito do pensamento jurídico, acolhendo-se ou rejeitando-se suas premissas, porém, sem deixar de considerá-las.
Neste contexto, é de suma importância o conteúdo prefacial de The Concept of Law, espaço em que H. L. A. Hart estabelece as condições de possibilidades que visam ao desenvolvimento de sua teoria. Assim, o autor expõe seu propósito subjacente na passagem inaugural da obra: “meu objetivo neste livro foi aprofundar a compreensão do Direito [...]”[3]. Todavia, o que é isto – o Direito? De acordo com a síntese esboçada por H. L. A. Hart, ao compilar o entendimento de outros teóricos como Karl Llewellyn e Oliver Wendell Holmes Jr., expoentes de uma vertente denominada “realismo jurídico”, escola de pensamento do Direito norte-americano, para quem o Direito é, simplesmente, aquilo que as Cortes dizem que é, na visão desses autores, respectivamente, “o que as autoridades fazem a respeito dos litígios é... o próprio Direito”; “as previsões sobre o que os Tribunais farão... são o que entendo por Direito”[4].
No entanto, engane-se o leitor ao pensar que tal concepção é algo restrito a um movimento que, por ser geograficamente distante, não nos diz respeito; ao que consta, a velha máxima realista, consciente e/ou inconscientemente, está replicada em nossa cotidianidade das práticas jurídicas. Se há qualquer dúvida neste sentido, basta pensar que, se o Direito é o que quem decide diz que é... O que nós, comunidade jurídica, que formamos a práxis, queremos que o Direito seja, a fim de que não fiquemos reféns ou apenas na torcida para que se tenham bons decisores? Eis o busílis denunciado e combatido, corajosamente, por um dos maiores juristas do Brasil, o professor e advogado gaúcho Lenio Streck. Afinal, se não quisermos aceitar o papel de meros reféns ou torcedores de um realismo jurídico tupiniquim, é preciso que assumamos a responsabilidade de dizer o que queremos do Direito.
Pois, vejam a gravidade do problema. Se, quando quem decide, ou até mesmo quem insta a quem decide, ideologiza o Direito, já não temos mais Direito e, sim, política, economia, moral etc., menos Direito[5]. Isto ocorre todos os dias, país afora, mormente diante do contexto de pandemia ocasionada pela Covid-19. Só para usarmos um exemplo: há relatos de que juízes decidiram contra o lockdown em meio à crise sanitária[6], tendo o apoio, registra-se, em alguns casos, do Ministério Público, preocupado de maior, ao que parece, em garantir, apenas, o direito fundamental de ir à missa e aos cultos[7]. Assim, se dá o nosso duplo fracasso: (i) para além das mais de 400.000 mortes registradas até agora no país (!!!), (ii) quem deveria usar o Direito para salvar vidas e obrigar o Poder Executivo a não se omitir, nada ou quase nada fez.
Acontece que nada é por acaso. Uma coisa está diretamente ligada à outra. Explico. Há fortes indícios de que a ideologização da pandemia tenha feito com que o Direito não pudesse se adiantar à tragédia. Neste contexto, as instituições e os indivíduos que materializam o que chamamos de cotidianidade das práticas jurídicas foram, no mínimo, coniventes. Não houve apuração da conduta das autoridades responsáveis; não houve responsabilização institucional. A política, a economia, a moral etc., foram predadoras do Direito a ponto de ele não ter sido capaz de constranger e controlar a morte como política de Estado. Forte assim. Simples assim. Trágico assim.
Pois, em não sendo compreendido corretamente, o Direito pode servir como instrumento para qualquer fim. Inclusive, para matar. É por isso que tal realidade não admite nosso silêncio eloquente[8]. Talvez, num cenário distópico (a literatura... Sempre ela), calar-se tenha sido uma opção para quem busca permanecer distante – como o Sr. Faber, personagem de Fahrenheit 451, a quem o bombeiro Guy Montag recorre em meio a sua crise ideológica, que afirma: “Senhor Montag, o senhor está olhando para um covarde. Eu vi o rumo que as coisas estavam tomando, muito tempo atrás. Eu não disse nada. Sou um dos inocentes que poderiam ter elevado a voz quando ninguém atentava para os 'culpados', mas não falei e, com isso, eu mesmo me tornei um dos culpados [...]”[9] – agora, quando somos nós, bacharéis, estagiários, advogados, promotores, defensores, juízes, ministros etc., os responsáveis pela imposição de critérios a partir dos quais se possa significar o Direito, a própria abstenção em fazê-lo implica uma escolha – covarde, como no caso do personagem, o Sr. Faber.
Últimas palavras. O Direito pode ser muito mais que tudo isto. Pode, não. Ele é muito mais que isto. Basta que tornemos a refletir sobre o seu significado para além do que os Tribunais dizem que ele é (a velha máxima realista) e, também, o que queremos que ele seja. Se não for assim, fracassamos. Enquanto comunidade jurídica, temos nossa parcela de culpa, dia após dia. Responder o que é e o que queremos do Direito, eis as nossas tarefas, jurídica e existencial.
Post scriptum: hoje, 19 de maio, Dia do Estudante de Direito, minha homenagem a todos os graduandos espalhados por aí, no sentido de que são vocês, acadêmicos, que, sobremodo, renovam minhas esperanças com relação ao que o Direito pode vir a ser a partir daqueles que vêm para ajudar a construi-los. À luta, pois.
Referências:
BRADBURY, Guy. Fahrenheit 451: a temperatura na qual o papel do livro pega fogo e queima. Tradução Cid Knipel. São Paulo: Globo, 2020, p. 78-79.
HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. Pós-escrito organizado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz; tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
“Juízes usam informação falsa sobre a OMS para fundamentar decisões”. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-abr-03/juizes-usam-fake-news-oms-fundamentar-decisoes>. Acesso em 13 de maio de 2021.
“PGR pede que Supremo suspenda decreto de São Paulo proibindo cultos e missas”. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-abr-01/pgr-suspensao-decreto-sp-proibe-cultos-missas>. Acesso em 13 de maio de 2021.
[1] BRADBURY, Guy. Fahrenheit 451: a temperatura na qual o papel do livro pega fogo e queima. Tradução Cid Knipel. São Paulo: Globo, 2020, p. 78-79.
[2] HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. Pós-escrito organizado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz; tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
[3] Ibidem, p. IX.
[4] Ibidem, p. 2.
[5] O professor Lenio Streck vem trabalhando essa questão já há muitos anos. De acordo com ele, o Direito é um conceito interpretativo, emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões a ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios, nos regulamentos, nos precedentes etc., e não na vontade individual do aplicador. Ou seja, o Direito possui, sim, elementos decorrentes de análises políticas, econômicas, morais etc.; só que estas, depois que o Direito está posto, no paradigma de um Estado Democrático de Direito, não podem vir a corrigi-lo. A política, a economia, a moral etc., ajudam a construir o “Império do Direito” (para utilizar a expressão de Ronald Dworkin). Uma vez que ele está posto, é o Direito que filtra e institucionaliza os juízos de esfera política, econômica, moral etc. Não o contrário.
[6] “Juízes usam informação falsa sobre a OMS para fundamentar decisões”. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-abr-03/juizes-usam-fake-news-oms-fundamentar-decisoes>. Acesso em 13 de maio de 2021.
[7] “PGR pede que Supremo suspenda decreto de São Paulo proibindo cultos e missas”. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-abr-01/pgr-suspensao-decreto-sp-proibe-cultos-missas>. Acesso em 13 de maio de 2021.
[8] Inspiração do Direito alemão, o conceito, em síntese, traduz-se numa omissão intencional.
[9] BRADBURY, Guy. Fahrenheit 451: a temperatura na qual o papel do livro pega fogo e queima. Tradução Cid Knipel. São Paulo: Globo, 2020, p. 106.
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